Bonecos de pano auxiliam crianças renais crônicas

 

É uma hora da madrugada e Maria Vitória Paixão, de 14 anos, aguarda a van da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará na estrada de Bacuriteua, próximo a Bragança, no nordeste paraense. Ela é a primeira paciente infantil a ser apanhada para a sessão de hemodiálise que começará ao amanhecer na capital, Belém.

Ela fica cerca de quatro horas ligada à máquina de filtragem do sangue e refaz o caminho de volta para estar em casa somente às nove da noite. A adolescente nasceu com meningocele, síndrome rara que atinge bebês ainda no útero, ocasionando má formação da medula espinhal. A insuficiência renal é uma das sequelas que costuma aparecer nesses casos.

A rotina se repete quatro vezes por semana e é imprescindível para executar a tarefa vital que os rins não conseguem realizar sozinhos. Necessária, porém desgastante, pois afeta diretamente a qualidade de vida de outras 25 crianças e adolescentes atendidos no setor de Terapia Renal Substitutiva da instituição. Essa foi a constatação da pesquisa da terapeuta ocupacional Thais Cabral, egressa do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade do Estado do Pará (Uepa), em parceria com instituições preceptoras, entre elas a Santa Casa.

Thais coletou os dados em 2016 durante seu período de residência no setor. A terapia ocupacional integra a equipe multiprofissional e inclui também as áreas de pedagogia, enfermagem, nutrição, psicologia, serviço social e nefrologia pediátrica. A Santa Casa é pioneira nesse formato de atendimento e possui um Comitê de Humanização.

“Avaliamos a rotina de vida do paciente pré-tratamento e as mudanças necessárias a partir do diagnóstico. Buscamos minimizar o impacto, tornando a adaptação menos dolorida e orientando a família quanto aos cuidados crônicos e em longo prazo, que exige restrições”, afirma Fernanda Lobato, terapeuta da instituição, que colaborou com a pesquisa.

A assistência também visa promover qualidade de vida durante o tratamento, pois as sucessivas internações interferem no desenvolvimento físico, cognitivo e social. Os atendimentos são realizados durante as sessões de hemodiálise para melhorar a aprendizagem conforme a faixa etária da criança. De acordo com a terapeuta, a maioria delas precisa se afastar da escola, por isso também tem acompanhamento pedagógico. “Quanto mais ativa a criança, menores são os efeitos colaterais desse tratamento”, explica Fernanda. Para estimular a participação dos pacientes são realizadas atividades individuais, em grupo, palestras educativas, jogos e gincanas. Como o tratamento é de longo prazo, é possível perceber a resposta e as consequentes mudanças no desenvolvimento infantil.

Na pesquisa, Thais buscou avaliar o nível de qualidade de vida sob o olhar das crianças e dos pais. Ela utilizou um questionário para identificar a percepção de três fatores: independência, exclusão social e o impacto do tratamento.

Os resultados mostraram que as crianças possuem um grau de dependência maior por conta das limitações, como os cuidados com o cateter que liga os pacientes às máquinas e não pode ser molhado. “Vivemos em uma região cheia de rios e elas não podem desfrutar. É calor e tem restrição de ingestão de líquidos. Tudo isso faz com que elas acreditem que podem menos do que as outras crianças”, afirma Thais.

O tratamento, último ponto analisado, revela o maior impacto, já que a quebra da rotina interfere não apenas nos pacientes. “Causa uma ruptura na vida da mãe - que corresponde a mais de 80% dos acompanhantes - e de toda a família, que precisa se adaptar à rotina, adotar novos hábitos e passar pelo mesmo processo de sofrimento”, completa.

Thais foi além dos resultados da pesquisa e criou um mascote para melhorar a realidade dos pacientes. Rinaldinho e sua versão feminina, Rinaldinha, são bonecos de feltro em formato anatomicamente parecido com os rins humanos. Cada paciente recebeu um exemplar. “A ideia é que eles tivessem um símbolo que pudessem se identificar”, conta.

A proposta foi abraçada pela instituição e os bonecos passaram a integrar as ações educativas. “É uma linguagem diferente, o personagem facilita o entendimento, eles criam vínculos relacionados à saúde e ao autocuidado. Buscamos associar o mascote ao que eles deveriam fazer e que de repente ainda não conseguem”, afirma Fernanda.

Os bonecos dinamizaram a rotina de pacientes que esperam por um transplante há mais cinco anos, tempo de existência do serviço da Santa Casa. O trabalho das terapeutas também engloba esse acompanhamento da fila de espera. Até 2016 a média de cirurgias era de duas por ano, mas desde janeiro esse cenário começou a mudar. Foram transplantadas quatro crianças, três delas no Hospital Ophir Loyola e uma em São Paulo, devido o peso ser abaixo de vinte quilos.

Apesar do cenário de esperança, a demora é grande devido a falta de doadores de rins para crianças. Alguns jovens alcançam a maioridade e continuam o tratamento no serviço adulto.  Para Thais, muitas pessoas não conhecem a realidade da diálise infantil e acham que ocorre mais em adultos, com o envelhecimento. “É importante alertar a sociedade para trabalhar de forma preventiva e sensibilizar quanto à doação de órgãos. Existem muitas crianças precisando de transplante e acabam se perdendo porque as famílias não têm esse entendimento”, finaliza Thais.

Texto: Dayane Baía

Fotos: Nailana Thiely